“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”Assim regista a lei das leis, a Constituição da República Portuguesa (CRP). Contudo, quatro décadas depois da sua promulgação, continua por se fazer cumprir este e outros direitos fundamentais dos portugueses.

 

Vivemos num país com muitas casas vazias, um número muito elevado de fogos devolutos, 735 mil segundo dados dos censos de 2011, e muita gente sem casa. Ou pelo menos sem casa minimamente condigna. Quando há cerca de 20 anos, em 1993, se iniciou o Programa Especial de Realojamento (PER), o défice habitacional era estimado em cerca de 400 mil fogos. Entretanto construíram-se cerca de um milhão e meio de novas habitações. Mas os problemas habitacionais estão longe de estar resolvidos, face à degradação do parque habitacional e sobretudo às dificuldades financeiras reais no acesso à habitação.

 

O acesso a um tecto condigno longe de se concretizar, como um direito fundamental que a CRP consagra, é uma miragem para muitos milhares de cidadãos.

O governo PSD/CDS apresentou recentemente a “Estratégia Nacional para a Habitação. Desafios e Mudanças”. Partindo do diagnóstico da realidade da habitação no país, avança o governo, através do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), para uma estratégia assente numa visão, em três pilares e oito desafios. A visão corresponde ao imperativo constitucional: “A criação de condições que facilitem o acesso das famílias à habitação, com facilidade de acesso no preço, na localização, na qualidade, no conforto, na segurança, nas acessibilidades, na tipologia, na forma de ocupação, na mobilidade, no meio ambiente que a envolve.”

 

Até aqui tudo bem. A concretização desta visão através de pilares e sobretudo dos “desafios” propostos constituem e correspondem a opções ideológicas determinadas. Estaremos de acordo com o primeiro dos pilares da intervenção na Habitação – a Reabilitação e a Regeneração Urbana, recuperando o papel competitivo das áreas antigas dos centros urbanos, recuperando o parque edificado, numa inversão do paradigma de expansão e construção nova que foi dominante. O segundo pilar assenta no Arrendamento Habitacional em alternativa à aquisição de habitação própria, num contexto de diminuição do financiamento bancário e da necessidade de redução do endividamento das famílias. O terceiro pilar aponta para a Qualificação dos Alojamentos, aproveitando as inovações tecnológicas, medidas de eficiência energética, erradicando núcleos de alojamentos precários e eliminando a falta de condições básicas de alojamento.

 

Como concretizar esta visão de habitação? O IHRU aponta três desafios para o primeiro pilar: incentivar a conservação duradoura e regular do edificado; reduzir custos e simplificar o licenciamento na reabilitação de edifícios; atrair investimento para a reabilitação do parque habitacional.

Relativamente ao segundo pilar, Arrendamento Habitacional, são apontados dois desafios: dinamizar o mercado de arrendamento; integrar e valorizar os bairros e a habitação social. Para a concretização do último pilar, indicam-se outros três desafios: contribuir para a inclusão social e a protecção dos mais desfavorecidos; corresponder às novas realidades sociais e demográficas; promover a melhoria das condições de alojamento. Um vasto conjunto de medidas é entretanto avançado para a prossecução desta estratégia.

 

A questão de fundo prende-se com a visão política que as acolhe. O Estado define a estratégia global, legisla e fiscaliza. Os privados, a banca, fundos imobiliários, seguradoras e empreendedores de vário tipo executam as medidas. Numa economia em crise, deixa-se ao cuidado de agentes económicos a concretização de um direito essencial, o direito à habitação, sem cujo cumprimento é impossível combater a pobreza. Assegurar este direito a todos não é indissociável, bem pelo contrário, da alteração de paradigma das políticas sociais assentes num novo modelo de desenvolvimento económico, através da retoma da produção nacional e da dignificação do trabalho e dos direitos dos trabalhadores.

 

Para as muitas famílias sem condições financeiras para aceder a uma habitação, ou para as quais tal acesso implica o agravamento brutal das suas condições de vida, empurrando-as para a pobreza extrema e, ainda, para as muitas que vivem em habitações degradadas, as soluções estratégicas preconizadas de nada servem sem a assumpção pelo Estado das suas obrigações na definição de outras políticas económicas e sociais.

 

Uma casa para todos pode ainda ser um sonho. A estratégia que se impõe não passa por deixá-lo à mercê do mercado e dos seus agentes económicos.

Realize-se o sonho de transformar a vida numa vida mais digna. Vinícius de Moraes, no poema “A Casa”, popularizado entre crianças de várias gerações, pode bem apenas contar uma história do que foi e já não é: “Era uma casa muito engraçada/ Não tinha tecto/ Não tinha nada/ Ninguém podia/ Entrar nela, não/ Porque na casa/ Não tinha chão/ Ninguém podia/ Dormir na rede/ Porque na casa/ Não tinha parede/ Ninguém podia/ Fazer pipi/ Porque penico/ Não tinha ali/ Mas era feita com muito esmero/ Na Rua dos Bobos/ Número Zero”. Encerre-se a Rua dos Bobos. Com casas dignas para pessoas com direitos. Uma estratégia para habitação no espírito de Abril e da Constituição que emanou do povo.

 

Francisco Queirós