Intervenção de Jorge Cordeiro, director da Revista Poder Local, na Conferência Nacional sobre os 40 anos do Poder Local Democrático.

 

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Conferência Nacional sobre os 40 anos do Poder Local Democrático / CML

 

Poder Local, cidadania e participação. O tema suscita em si uma vastidão de reflexões que afastam qualquer pretensão de as esgotar ou mesmo desenvolver. Reflexões directa ou indirectamente associadas ao que está proposto para este nosso painel. Sejam elas sobre «Cidadania e direitos», «exclusão e cidadania», «participação e inclusão», «políticas locais e a determinante nacional», «o papel do Poder Local, as suas características originárias, o seu percurso e enquadramento», «as condições de exercício de poder, a sua natureza, objectivos e opções.»

 

Optarei, assim, por salientar três expressões que o tema consente: a natureza e características do Poder Local na sua relação com a dimensão democrática e participada que incorpora; a participação enquanto factor de cidadania, inclusão social, afirmação e realização de direitos; a expressão concreta da participação, do seu papel na gestão democrática das autarquias, os seus objectivos, pressupostos e características que considero inseparáveis na sua concretização.

 

Mesmo com o risco de uma abordagem aparentemente nas fronteiras do tema que está proposto, mas imprescindíveis para a sua abordagem plena.

 

Uma primeira reflexão. O tema geral do Painel, e o tema proposto para esta intervenção – Participação na vida local – obriga a olhar desde logo para o Poder Local Democrático enquanto conquista da revolução de Abril.

 

Na origem da construção do Poder Local que hoje conhecemos e da legislação que o conforma está ainda a marca da participação popular, da unidade em torno da resolução dos problemas, da afirmação das formas organizadas das populações e do associativismo.

 

Uma participação presente desde o inicio da revolução de Abril na intervenção popular que conduziu à instalação das comissões administrativas, na intervenção directa das populações com destaque para a amplitude do trabalho voluntário e a dinamização de milhares de organizações populares de base, na dinâmica de unidade em torno da satisfação de necessidades básicas.

 

É uma evidencia, que ninguém pode negar, que o Poder Local constituiu-se como motor de transformação das condições de vida, espaço de afirmação de direitos e de formação democrática.

 

A reconhecida capacidade de realização é inseparável de características ímpares moldadas pelo processo de participação e transformação social desencadeada com a revolução de Abril.

 

A componente participativa do Poder Local é inerente à sua dimensão democrática, das condições de exercício das atribuições e competências, da autonomia que lhe está consagrada pela Constituição da República.

 

O Poder Local Democrático enquanto conquista de Abril e a consagração em texto Constitucional são expressão dessa dinâmica de participação e intervenção directa das massas. E se com rigor se pode e deve valorizar a dimensão democrática do Poder Local consagrada na Constituição, também com rigor idêntico se pode dizer que o seu carácter progressista e avançado que o diferenciaram de todos os modelos de Poder Local em outros países tem origem nesse impetuoso e criativo processo de participação e mobilização populares.

 

A natureza e característica colegial, plural e participada do Poder Local vertida nas leis originárias de atribuições e financiamento, no enquadramento jurídico do regime eleitoral, no princípio da autonomia são inseparáveis da dinâmica popular e transformadora inerente aos primeiros anos de vida das autarquias locais.

 

Não se concluirá precipitadamente que o empobrecimento democrático a que o Poder Local tem estado submetido ao longo de anos, e de forma mais intensa o período do anterior governo, é sinónimo de bloqueio a uma gestão participada.

 

Mas também não se pode nem deve concluir que a componente de participação está automaticamente assegurada e realizada a partir das característica e natureza do Poder Local. Pela simples razão de que a participação, sobretudo as expressões e objectivos que assume, decorrem de opções políticas, de concepções de exercício de poder.

 

O que com rigor se pode afirmar é que o Poder Local e o seu enquadramento constitucional favorece, promove e incentiva uma gestão participada.

É por essa razão que não é indiferente à componente «participação» o percurso do Poder Local, a redução da sua dimensão democrática, os atropelos à sua autonomia, a negação das condições financeiras, humanas, materiais e organizacionais a que tem sido sujeito por sucessivos governos.

 

Não se pode olhar para a dimensão de participação do Poder Local e as suas possibilidades de realização sem constatar as consequências negativas de sucessivas amputações da sua expressão democrática: a redução do número de eleitos impostas em 1984; a eliminação da consagração legal de participação reconhecida às organizações populares de base (designadamente às comissões de moradores); a redução de 200 para 150 do número de eleitores limite para a substituição do plenário de cidadãos (participação directa) por sufrágio eleitoral; a eliminação dos conselhos municipais inscritos na primeira lei de atribuições e competências; a liquidação de um milhar de freguesias com o afastamento de mais de vinte mil eleitos locais.

 

Não se pode olhar para a dimensão de participação do Poder Local ignorando as consequências directas ou indirectas que a ofensiva contra a sua autonomia, a negação de condições de exercício das suas atribuições e competências ou a trajectória de asfixia financeira a que tem sido sujeito tem na expressão dessa participação. Autonomia e participação estão interligadas. As Ingerências e intromissões da administração central, as consignações com o que usurpam de livre direito de decidir de meios próprios das autarquias, a submissão de políticas municipais a entidades reguladoras determinando opções de eleitos e populações sobre matérias como tarifários, a tutela de mérito e a multiplicação de acções inspectivas e decisões arbitrárias reduzem e ferem, mesmo quando não se evidencie de forma directa, a participação.

 

Participação e descentralização são conceitos inseparáveis. Descentralização, desconcentração, transferência de competências não são sinónimos. Não se recusa a necessidade de um processo de desconcentração que aproxime serviços desconcentrados do Estado das populações, mas o que não se deve aceitar é que em nome da desconcentração se rejeite a descentralização ou se justifique o seu adiamento. Assim como transferir competências não corresponderá a uma efectiva descentralização se não for acompanhada, como não tem sido, de condições de exercício para dar resposta a problemas das populações. A descentralização tem de ser assumida no pleno conceito de poder de decisão e não de mera capacidade de execução ou de suporte de encargos.

 

Participação e resolução de problemas da população andam a par. A capacidade de resposta à segunda credibiliza, atrai e torna mais perceptível os resultados da participação. Donde as condições de exercício do Poder Local, os meios que tem ao seu dispor e o poder que daí resulta para satisfazer necessidades, são factores associado à participação.

 

Em síntese, a valorização da participação exige a valorização do Poder Local. Repetir elogios ao Poder Local sobre a sua capacidade realizadora sem lhes fazer corresponder os meios e condições para a sua acção tem tanto de incoerência quanto de demagogia.

 

Uma segunda reflexão. A intervenção do Poder Local deve assumir-se como factor de afirmação da cidadania e da dimensão concreta que tem de expressar.

 

A cidadania não se pode resumir a um passivo enunciado de direitos. A cidadania constrói-se pela intervenção consciente na luta por esses mesmos direitos que lhe são devidos, pelas condições de liberdade económica e social que lhe permitam a sua afirmação, pelo acesso à informação, ao conhecimento e à cultura.

 

Se vista assim, a cidadania e a sua afirmação e construção encontra no Poder Local um espaço privilegiado para a resolução de problemas, de elevação das condições de vida, de participação e envolvimento populares.

 

Uma cidadania assumida não apenas pelo enunciado do elenco de direitos e deveres, mas como factor de mobilização e participação para que se reduza a diferença entre os direitos proclamados e os direitos assegurados.

 

Uma cidadania assumida não como conceito genérico capaz de esconder os conflitos sociais e de classe que sob ele perduram, mas como um modo de afirmação dos direitos de cada um, de envolvimento e mobilização cívica das populações, de activa participação capaz de contribuir para a elevação da consciência política e social das populações indispensáveis à efectivação dos seus direitos.

 

É por se constituir como espaço privilegiado de participação e de transformação que o poder local se pode assumir como factor de uma cidadania consciente e exigente. A sua proximidade aos problemas e a sua identificação com as principais aspirações populares favorecem o envolvimento e a mobilização.

 

Informar e fazer participar as populações é não apenas dever de um poder democrático e um factor de acerto nas decisões, mas também um elemento essencial de formação da ideia de que todos e cada um contam, de que a democracia vai para além da sua expressão representativa.

 

Ao Poder Local cabe não apenas dar resposta aos problemas que estão ao seu alcance resolver mas também contribuir para afirmar os direitos sociais em toda a sua dimensão.

 

Em síntese, a participação é um factor e contributo à inclusão. A expressão dessa contribuição não é dissociada das opções políticas.

 

O Poder Local não é politicamente, um ente abstracto ou neutral. A contribuição das autarquias para a condução e implementação de uma política de efectivo combate à exclusão depende das opções e orientações dominantes na respectiva gestão. Incluindo os critérios em que assenta uma gestão participação, os objectivos, expressões e conteúdos dessa participação.

 

Terceira reflexão. A participação não é um fim em si mesma, mas sim uma condição para a condução e exercício de uma gestão verdadeiramente democrática.

 

Razões objectivas de proximidade e ligação aos problemas e a motivação de participação que suscita, fazem do Poder Local espaço privilegiado para a sua efectivação. Seja na sua relação com a população, os trabalhadores da autarquia, o movimento associativo ou a comunidade educativa, a participação baseia-se em elementos que a realizam e lhe dão expressão.

 

Não há participação sem informação, proximidade, acessibilidade, prestação de contas.

 

A participação tem de constituir norma de conduta, não fruto de critérios de moda.

 

Por muito apelativo que apareça soluções de participação assentes em atribuição de poderes de decisão directos, incluindo orçamentais, não contribuem para dar resposta e definir prioridades assentes em critérios de necessidade. Sobretudo se se ignorar os riscos de promover uma participação condicionada ou determinada apenas pelos que têm mais informação, conhecimentos ou poder reivindicativo. Uma gestão democrática e participada não tem de traduzir a demissão do poder de decisão dos seus órgãos. O que tem de assegurar é que essa decisão tem e deve incorporar elementos de consideração a partir do envolvimento popular que contribuam para decisões acertadas e em linha com as suas necessidades e aspirações.

 

A participação deve ter na sua construção quatro elementos: ser parte do processo de decisão e não uma mera formalidade; ser directa e não apenas intermediada; ser acessível e simplificada para a apresentar de forma compreensível; ser dirigida e orientada para promover a participação dos que primeiro se sentem excluídos. 

 

A participação e o desenvolvimento da democracia participativa não é separável das opções políticas que lhes correspondem. Podem-se encher páginas de enaltecimento à participação, mas se uma autarquia opta pela privatização de funções, pela alienação de competências ou pela transferência para entidades sem legitimidade democrática está a reduzir a participação, a afastar as populações do escrutínio de áreas de gestão.

 

Em síntese sublinharia a dimensão democrática, e não apenas instrumental, da participação e a contribuição que pode e deve dar para reduzir e combater o populismo e constituir-se como factor de reforço de consciência social e política de cada pessoa perante o poder, de exigência dos direitos que tem, de recusa de sentimentos de dependência e favor face a esse mesmo poder.

 

 

 

Jorge Cordeiro

(director da revista Poder Local)